Friday, March 09, 2007

Amor fraterno e o tabu do incesto.


Se Freud está certo, o que todo homem sempre desejou é matar o pai e dormir com a mãe. Como isso provocaria um bocado de confusão, a solução que a humanidade encontrou no curso de seu desenvolvimento foi produzir tabus sexuais que nos vedam determinadas mulheres, a começar da própria mãe.

Ainda bem que existe um “se”!

A proibição do incesto, em que pese a grande variabilidade da noção de parentesco, é um universal humano, isto é, está de alguma forma presente em todas as sociedades compostas por homens e mulheres.

É alentador saber que restou algum absoluto – aqui devidamente apelidado de “universal humano” – neste mundo pós-moderno.

Os alemães Patrick Stübing, 28, e Susan Karolewski, 21, não concordam muito com essa idéia. Eles são irmãos e reivindicam o direito de viver juntos como marido e mulher. Já têm quatro filhos, dois dos quais com problemas de saúde, muito embora não se possa precisar se tal condição se deve aos percalços à consangüinidade ou ao fato de os bebês terem nascido prematuros.

Estudos científicos exaustivos demonstram que a principal razão para problemas de saúde de nascituros é a consangüinidade, quando a relação é de irmãos.

O matrimônio está ameaçado pois Patrick, que já cumpriu 25 meses de cadeia por manter relações incestuosas, agora corre o risco de passar mais 30 meses no xilindró, uma vez que se recusa a interromper seu "casamento" com Susan, que também corre o risco de ser encarcerada. Ela já foi condenada uma vez a um ano, mas pôde cumprir a pena em liberdade. Na hipótese de uma segunda sentença, não terá direito ao benefício. Os irmãos agora pedem que a lei antiincesto seja declarada inconstitucional. Na semana passada, um tribunal determinou que o aprisionamento de Patrick seja suspenso até que a Corte Constitucional Federal dê seu veredicto.

Não vejo como deixar de dar razão aos irmãos. Daí não decorre que eu pretenda abolir a interdição do incesto e, com isso, solapar as bases da família, da moral e da civilização. O meu argumento é bem mais trivial: não cabe à lei positiva tentar fazer o que a cultura e/ou a biologia já praticamente garantem. Impor uma sanção penal a irmãos que mantenham relações sexuais é na esmagadora maioria das vezes ocioso. Disposições inatas ou coerções sociais existentes contra o incesto já eram eficazes muito antes do surgimento do primeiro tribunal. Mesmo nos casos em que a atração entre parentes próximos vence as barreiras da moral interna e da sociedade, não há razões para meter os transgressores na cadeia.

Vejamos, se entendi, o argumento: se algo é garantido pela cultura ou pela biologia – leia-se genética – então não há necessidade de norma social que o garanta?
Em outros termos, se algo é natural como... vejamos... só comer o que é necessário e não estragar o meio ambiente ou o equilíbrio ecológico ou promover sofrimento desnecessário a outras espécies – teria algo mais natural do que isto? – então, não precisaríamos de leis que restrinjam poluição, crueldade contra os animais etc e tal, porque “naturalmente” isto não ocorrerá! Fala sério!
Ok! Ok! A lei positiva não é necessária quando a coerção social e disposição inatas dão conta do recado. Mas, aí surge outro problema: o argumento não é que a norma espelha a sociedade ou a cultura, então se já há consenso na cultura – como é o nome mesmo? Ah! Sim! “Universal Humano”! – então porque não cristalizá-lo na norma?
E por que metê-los na cadeia? Sem dúvida que a restrição da liberdade deveria ser última instância. Ou penúltima, diante da viabilidade da pena de morte. Porém, não haveria em pleno estado de direitos outras “penas”? Certamente que sim! Então, não vamos puxar no azeite e sal, nem realçar tintas fortes num quadro sombrio de aprisionamento em relação a uma questão já propensa a emocionalismos descabidos.

A saga de Patrick e Susan, que chocou a Alemanha e ganhou as manchetes em todo o mundo, é, num determinado nicho --o de parentes que foram criados separadamente e depois se reencontram--, bastante comum. E Patrick e Susan não cresceram juntos. Ele foi entregue para adoção antes de ela nascer e só vieram a conhecer-se quando contavam com 23 e 16 anos respectivamente. Sabendo que era adotado, um dia ele decidiu procurar sua família biológica. Encontrou a mãe e Susan e passou a viver com as duas. Pouco depois, a matriarca morreu, mas ele continuou coabitando com a irmã.

Ao que tudo indica, operou aqui o que alguns psicólogos e psiquiatras chamam de Atração Sexual Genética (GSA). O conceito ainda é polêmico nos meios médicos. Existe um único trabalho acadêmico a respeito e de escopo bastante modesto. O fato, já há tempos atestado por profissionais que trabalham com agências de adoção, é que um número desproporcionalmente alto de parentes que se reencontram em idade adulta acaba desenvolvendo sentimentos obsessivos em relação ao genitor ou irmão, que freqüentemente assumem caráter sexual. Segundo registros informais, a GSA ocorre em até metade dos casos de reunião familiar.

Ora, ora, ora... Quando eu leio alguém esgrimindo um argumento pretensamente científico baseado num único trabalho genético, eu começo a rir da seriedade de quem escreve, mesmo que seja um sujeito do calibre de Hélio Schwartsman. Deve ser “hidden agenda”. Everybody has one! Ok! Vamos hipoteticamente assumir que existiria exaustiva comprovação da GSA (sic!), então admitir que estes sentimentos são “obsessivos” (vide DSM-IV) não ajuda muito à causa.

Não é muito difícil encontrar uma lógica genética para esse suposto fenômeno. Basicamente, os genes que definem as características físicas e psicológicas distintivas de um indivíduo costumam vir pareados com os genes que fazem com que ele manifeste preferência por esses mesmos atributos em outras pessoas. Parentes próximos teriam, portanto, maiores chances de sentirem-se atraídos um pelo outro --mais ou menos como queria Freud.

Aqui vamos nós de novo! Genética não é destino, caro amigo!

Sabemos, entretanto, que o mundo não é um imenso berçário de rebentos incestuosos. Isso porque, em circunstâncias normais, ou seja, naquelas em que irmãos são criados juntos, o mecanismo da atração é de algum modo desligado. Aqui Freud sai de cena para dar lugar a um contemporâneo seu menos ilustre: o antropólogo finlandês Edward Westermarck, para quem o excesso de familiaridade apaga qualquer traço de desejo sexual --o exato oposto do que dizia o psicanalista austríaco.

Por incrível que pareça as duas interpretações não são necessariamente excludentes. O papel que Freud atribuiu à repressão social --à Lei-- pode ser, na verdade, uma manifestação do efeito Westermarck, pelo qual a aversão sexual por parentes seria um mecanismo biológico inato, disparado pela convivência próxima. As teorias do finlandês encontram respaldo em descrições de casos de crianças sem laços biológicos criadas juntas em "kibbutzim" israelenses. Contrariando as expectativas de pais e educadores, elas desenvolveram o que parece ser uma repulsa por relacionamento sexual com membros do grupo, que acabam sendo encarados como irmãos.

Difícil é levar este argumento às últimas conseqüências e tentar explicar como então grupos sociais têm tendência de formar um cordão de isolamento que conduz seus elementos a relações intragrupais e isto por várias gerações e com exemplos em todas as latitudes e longitudes e em todos os tempos. Por falar nisto, não era essa pureza “racial” que faz com que judeus e nazistas acabem sendo, neste ponto, mais semelhantes do que diferentes? Ih! Desculpe! Este é um tabu muito mais difícil do que o do incesto. Falta pouco para alguém me rotular de “anti-semitismo”!

Seria interessante tentar estabelecer se é Freud ou Westermarck quem tem razão. A questão tem evidente valor acadêmico, mas ainda é necessária muita pesquisa antes de um juízo mais definitivo. Na prática, porém, não faz muita diferença se o horror ao incesto tem base biológica, cultural ou de ambas. O fato é que, em circunstâncias normais, ele existe. Que o digam Édipo e Jocasta que se auto-infligiram os piores castigos imagináveis por terem dormido um com o outro mesmo ignorando a condição de filho e mãe. Definitivamente, o homem já vem de fábrica com um poderoso "hardware" moral.

Ulalá! A coisa está ficando maravilhosa! Como é mesmo? “Definitivamente, o homem já vem de fábrica com um poderoso ‘hardware’ moral”. Isto é incrível! Só falta fazer coro a Aquino e chamar de “consciência moral” ou sofisticá-lo, latinamente, e chamá-lo de “imago Dei”!

Nesse contexto, em que a consciência de cada um normalmente já se encarrega de castigar com severidade até mesmo pensamentos incestuosos, torna-se ridículo impor também penas de prisão. Essas regras não passam de fósseis jurídicos dos quais poderíamos perfeitamente nos livrar. Boa parte do mundo, aliás, já o fez. Mesmo o Brasil, que costuma ser atrasado nessas coisas, já há muito deixou de punir o incesto. Embora a lei não permita que parentes próximos se casem "de papel passado", não há norma que impeça dois adultos, sejam irmãos ou pais e filhos, de manter relações sexuais consentidas. Outras nações que revogaram disposições antiincesto incluem França, Bélgica, Holanda, Luxemburgo, Portugal, Turquia, Japão e Argentina.

No caso específico da Alemanha, a regra foi introduzida no pacote de leis de eugenia baixado pelos nazistas e jamais foi revogada. Esse passado pouco abonador tende a ajudar os irmãos em seu pleito. À parte a pátria de Goethe, é no mundo anglo-saxônico que as normas contra o incesto vicejam com mais força. Elas seguem firmes no Reino Unido e na maior parte dos Estados norte-americanos. Entretanto, é na Austrália que elas atingem o paroxismo. Ali, a conjunção carnal com um parente próximo é considerada crime equiparável ao de homicídio doloso, com pena de até 25 anos de reclusão. Não me perguntem pelo porquê de tamanho rigor.

Pode-se, é claro, argumentar que relações sexuais incestuosas devem ser objeto de regulação legal porque aumentam significativamente a chance de produzir bebês com problemas genéticos. É verdade, mas as leis antiincesto não vedam a procriação, só o sexo. A legislação alemã, por exemplo, embora pretenda proibir Patrick e Susan de dormir juntos, não impede que uma mulher seja inseminada artificialmente com gametas do irmão, do pai etc. No mais, o risco é parcialmente contornável com aconselhamento genético, modernas técnicas de seleção de embrião e aborto, nos países em que é permitido. O problema da consangüinidade também existe entre primos, que, entretanto, podem se casar sem obstáculos legais na maior parte do mundo.


Ora, ora, então, se exclui causa secundária, mesmo se mantendo a causa primária. Que falácia! Se a lei não veda a procriação, mas o sexo, então se deduz que pode haver a procriação sem sexo, o que, obviamente, é uma possibilidade da tecnologia da fecundação há muito tempo, mas que não evita o senão genético da lei, que é justamente o de não gerar filhos com defeitos genéticos. O argumento auxiliar dos primos usado pelo articulista não se sustenta também, porque a consangüinidade entre primos é muito mais suave do que entre irmãos, pela lógica sonora de que 1 + 1 é diferente de 2 + 2, isto é, duas “matrizes” genéticas no caso de irmãos têm maior semelhança genética do que quatro matrizes genéticas no caso de primos. Não sei se é matemática pura, mas é a metade das possibilidades!

Embora eu tenha defendido aqui que não faz sentido punir legalmente o incesto, não estou de forma alguma sugerindo que se deva derrubar essa barreira como uma manifestação da "moral pequeno-burguesa". Muito pelo contrário, o tabu do incesto é um dos principais traços que distinguem homens de animais.

Pronto! Fechou o firo! Não somos animais! Até que enfim, alguém admitiu a obviedade. Não posso sair por aí tendo intercurso sexual com bicho, com irmão, com ... bem não vou nem continuar a lista, senão vou ser bombardeado com recados “alegres” e furiosos! Mas, a verdade é que nesta era da primazia genética já estava com medo de dizer a verdade simples: “Somos animais, pero no mucho!” Ou melhor, “pero no apenas”!

Diferentes escolas de pensamento apresentam variadas interpretações para o fenômeno. Os sociobiólogos, por exemplo, enfatizam a questão genética. Populações com altas taxas de casamentos consangüíneos acabam tendo seu sucesso reprodutivo reduzido, pois o "pool" de genes favorece o aparecimento de doenças fatais. Já as correntes antropológicas apontam para o fato de que a interdição leva à exogamia, que é uma forma de forjar alianças políticas com outros grupos, reforçando o poder de ambos. Outros intérpretes sustentam que as interdições sexuais têm a função de definir com mais clareza o papel social de cada indivíduo. Seria de fato uma confusão se alguém ocupasse simultaneamente a posição de filho e marido, o que implicaria ser também e ao mesmo tempo irmão e pai. Vale notar que essas, e várias outras explicações, não se excluem. Ao contrário, reforçam umas às outras.

Podemos dividir as leis relativas à conduta sexual em três categorias: as que visam a proteger o indivíduo, como as normas antiestupro; as que buscam preservar o pudor público, como a proibição de fazer sexo no meio da rua; e as que pretendem preservar a moral individual, a exemplo das regras contra o incesto. Enquanto as duas primeiras precisam ser preservadas, a terceira é inteiramente inútil. Advogar o contrário é sugerir que o Estado pode aprovar leis contra o homossexualismo ou, como fazem vários Estados dos EUA, contra sexo anal, oral etc. Ora, o que dois adultos fazem de comum acordo entre quatro paredes é assunto que só diz respeito a eles.

Sugiro apenas ao casal alemão e a outros incestuosos apaixonados que tomem o cuidado de evitar filhos, o único corpo de delito capaz de provar seu "crime".

A minha sugestão é outra: que assumam o culturalismo tão caro aos germânicos e simplesmente, “resolvam” amar e viver com outras pessoas, visto que, esta é uma opção culturalmente determinada. Amar não é paixão, meu caro Schwartsman!

Hélio Schwartsman, 41, é editorialista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.


Robinson Grangeiro, 41, é um leitor metido a besta que gosta de azucrinar escritores de textos relaxados.

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